sexta-feira, 28 de novembro de 2014

A sustentabilidade e a Black Friday

Disseminar a sustentabilidade não é fácil. A cada passo dado, arduamente, na direção da racionalização, vários são dados na direção contrária.

Semeamos solitariamente, todos os dias, a semente da conscientização ambiental e sustentável junto a empresários, governos, familiares, amigos, colegas e vizinhos sobre os malefícios de se consumir algo apenas para satisfazer uma necessidade emocional, social ou psicológica em detrimento dos recursos naturais não renováveis envolvidos.
Mas cada Dia das Crianças, dos Pais, Mães, "Halloween", Natal, Páscoa e tantos outros dias comerciais do gênero agem como enxurradas e erodem o solo fértil e levam as sementes embora...

A forma como escrevo pode até remeter à uma certa religiosidade. Mas se raciocinarmos bem, há realmente um certo paralelo entre estes ideais. Afinal, a natureza é onipresente, está em todos os lugares. Além disto, reage a toda e qualquer ação ou alteração em seu meio por meio da comunicação entre seus sistemas ambientais e de vários ciclos, portanto também é onisciente. Finalmente, sendo a única fonte de recursos para todas as ações humanas e capaz de destruir cidades inteiras através de suas forças naturais, é onipotente.

Onipresente, onipotente e onisciente. Deus? Não, simplesmente a Natureza.
Com a tônica deste meu comentário, alguns poderiam achar que eu enxergo a Black Friday, com relação à sustentabilidade, como uma espécie de adoração ao demônio!!! Afinal, seu nome nos diz que hoje é uma Sexta-feira Negra...

Pessoal, cultuar o meio ambiente sim, mas sem fanatismos; com paixão mas dentro da razão e com consciência.
Para as pessoas agraciadas com um pouco de conhecimento sobre as consequências sociais e ambientais que este consumismo desenfreado pode trazer, esta realmente é uma sexta-feira negra.

O que mais entristece é ver empresas engajadas publicamente no desenvolvimento sustentável participando ou divulgando este "sabá".


Assistam este vídeo de 12 minutos chamado "A História das Coisas". Muito conveniente para este dia.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Jornalismo Fantástico - Meias verdades convenientes

Venho insistindo com certa frequência em trazer às claras determinadas matérias jornalísticas sensacionalistas, obscuras, tendenciosas ou simplesmente medíocres, veiculadas por mídias de diferentes grupos ou empresas de comunicação, restringindo-me às áreas que possuo algum conhecimento.
Já comentei sobre "lendas urbanas", sobre a "acidez que aumenta a alcalinidade" e agora apresento-lhes uma dobradinha: as "meias verdades".


A escassez hídrica é o assunto do momento. Tem que ser mesmo, afinal estamos falando da substância mais preciosa do Universo: A água. Porém, o que mais impressiona é a facilidade com que algumas pessoas tiram proveito de um momento tão dramático, um momento jamais vivido mas previamente anunciado, para se autopromover. O que é pior: Autopromover-se às custas de meias verdades.
Antes de entrar no fato em si, farei uma pequena mas fundamental menção legal. Isto fará com que os títulos das matérias objeto desta postagem indique a direção tomada pelas mídias e coloque em dúvida sua verdadeira intenção.

Água de Reuso

Não há no Brasil qualquer fundamento legal expresso que proíba reusar água de esgoto doméstico para fins de consumo humano. Também não há nada que permita. As poucas regulamentações que existem no Brasil direcionam o uso dessas águas para fins não potáveis.

"Se não há legislação ou restrições sobre o assunto, então nada impede que seja praticado!!" Isto estaria certo ou errado? Vejamos:


  • As atividades da administração pública, direta ou indireta, suas autarquias, empresas públicas ou mistas e de seus empregados públicos e servidores concursados, de seus servidores com cargos em confiança ou com mandatos eletivos, são regidas por lei. Portanto, todos estes "caras" somente podem fazer aquilo que a lei determina (Obs.: entenda-se por leis, além destas propriamente ditas, as resoluções, as normas de condutas dos servidores, os manuais de serviço, etc.).


Todos os decretos, leis e resoluções apontam sempre para a captação de água em um corpo hídrico ou em um poço. Não há quaisquer indícios sobre uma permissão para o consumo humano de água de reuso originada em esgotos sanitários. Se a lei não especifica, o poder público não tem autonomia ou vontade própria para agir. Vejamos alguns exemplos:

- A Resolução CONAMA 357/2005, entre outras coisas, classifica os corpos d'água. Ela preceitua em seu artigo 4º que as águas doces de classes Especial, I, II e III e as águas salobras de classe I, de maneira geral, podem ser destinadas ao abastecimento público, com algumas ressalvas sobre os tipos de tratamentos, de acordo com a classe.

- Já na Resolução CONAMA 430/2011, complementando a 357/2005, regula os padrões e condições de lançamentos de efluentes, orientando o tratamento de acordo com a classe do corpo hídrico que irá recebê-lo.

- A NBR 13.969: 1997 – Tanques sépticos – Unidades de tratamento complementar e disposição final dos efluentes líquidos - Projeto, construção e operação, orienta que: No caso do "esgoto de origem essencialmente doméstica ou com características similares, o esgoto tratado deve ser reutilizado para fins que exigem qualidade de água não potável, mas sanitariamente segura, tais como irrigação dos jardins, lavagens dos pios e dos veículos automotivos, na descarga dos vasos sanitários, na manutenção paisagística dos lagos e canais com água, na irrigação dos campos agrícolas e pastagens, etc."

"Então uma empresa privada, que tem concessão para tratar e abastecer uma população, poderia tratar água de reúso com finalidade potável!!"

Apesar de tratar-se de uma empresa privada, a concessão é de serviço público regido por uma agência reguladora pública, portanto valem as mesmas regras: fazer apenas o que a lei determina.


Com esta introdução, podemos passar às notícias... (para acessá-las basta clicar nos títulos)


Caso 1 - Revista VEJA eletrônica:


Campinas usará água de esgoto tratada para consumo

Este título remeteria o leitor a imaginar exatamente o que ele diz: Água de esgoto tratada para ser consumida pela população. O subtítulo deixa claro que hoje já é produzida água de reuso, mas não potável, o que deixa margem à interpretar que a coisa será realmente desta forma. Porém, lendo a matéria, percebe-se que a tentativa do título era apenas atrair os navegantes ávidos por qualquer boa notícia sobre a crise hídrica.
Para pessoas com algum conhecimento na área, fica claro que a única providência será construir longas adutoras e transportar a água de reuso até o rio Capivari, onde será lançada, diluída no rio e captada para o processo tradicional de tratamento e distribuição.

Segundo a reportagem, esse efluente terá qualidade superior à do rio pois a eficiência do tratamento será de impressionantes 99%. Neste ponto caberia uma pergunta: "Se a qualidade do efluente é superior à do rio, porque então não fazer o reuso direto, potabilizando-a e distribuindo-a?"
A resposta é simples: Eles somente podem fazer o que a legislação permite, isto é, lançar um efluente de qualidade tal que não afete a classe do corpo d'água.
Portanto, o título da matéria não condiz com a legalidade, tão pouco com o próprio texto, o que fica latente neste trecho: "A água de reúso será adicionada ao volume do rio e passará por um novo tratamento, o que permitirá o fornecimento à população."

"A ideia então não merece crédito ou elogio?"  - Depende:

Se a produção dessa água de reuso estiver hoje em y m³/s e passar a ser de xy m³/s, a atitude é maravilhosa. Mas se eles pensam em apenas transportar a mesma quantidade de um lugar para outro, então estarão apenas "cobrindo um santo e descobrindo outro".


Passemos à próxima...


Caso 2 - G1 Bom Dia Brasil:




Novamente a manchete não condiz com a real intenção. O subtítulo, que parece estar mais próximo da verdade, também é omisso ao resumir que será despejada uma água tratada. Tratada como? E para quais fins: Potáveis ou não potáveis?
O texto agrava ainda mais o contexto quando diz que a medida "já é usada em outras cidades grandes do mundo, inclusive uma cidade do interior de São Paulo, Campinas." Eu citei logo acima que a cidade de Campinas está INICIANDO AS OBRAS, que ficarão prontas em UM ANO E MEIO!!! Portanto essa informação de "já é usada [...] em Campinas" é uma grande mentira.


O procedimento técnico é diferente daquele a ser implantado em Campinas. Neste projeto o esgoto doméstico in natura de milhões de moradores coletado na região, que antes seguia para tratamento até a ETE Barueri, seguirá para uma EPAR. Desse ponto em diante, a solução será a mesma: Água de reuso despejada em corpo hídrico.


Continuando a ler o texto da matéria encontramos outro parágrafo inverídico:

"Esse esgoto, transformado em água de reuso, vai ser destinado ao consumo humano depois de passar pelas estações de tratamento".

Não!! Após ser "transformado" (??) em água de reuso, ele será despejado na represa e diluído em suas águas. Somente será destinado ao consumo humano após a captação e tratamento para sua potabilização e distribuição.

De acordo com a CETESB, existem três modalidades de reuso:

  1. Reuso indireto não planejado da água: água servida descarregada no meio ambiente e novamente utilizada a jusante, em sua forma diluída, de maneira não intencional e não controlada. Caminhando até o ponto de captação para o novo usuário, a mesma está sujeita às ações naturais do ciclo hidrológico (diluição, autodepuração);
  2. Reuso indireto planejado da água: efluentes tratados e descarregados de forma planejada nos corpos de águas superficiais ou subterrâneas, para serem utilizadas a jusante, de maneira controlada, no atendimento de algum uso benéfico;
  3. Reuso direto planejado das águas: os efluentes tratados e encaminhados diretamente de seu ponto de descarga até o local do reuso, não sendo descarregados no meio ambiente. É o caso com maior ocorrência, destinando-se a uso em indústria ou irrigação.

Fica claro no reuso direto planejado que, no Brasil, esta modalidade destina-se a uso em indústria ou irrigação. Isto reforça a tese de que a utilização da água de reuso para fins potáveis ainda não é permitida por aqui.


O artigo 5º da Resolução CONAMA 430/2011 regula essa iniciativa basicamente desta forma: "Os efluentes não poderão conferir ao corpo receptor características de qualidade em desacordo com as metas obrigatórias progressivas, intermediárias e final, do seu enquadramento" portanto, se a SABESP cumprir as especificações dos parâmetros, estará agindo na legalidade.

Isto significa que a tal EPAR (Estação de Produção de Água de Reuso) deverá tratar o esgoto com tal eficiência que a qualidade do efluente gerado seja igual ou superior à do corpo hídrico, cumprindo as determinações legais.

"Aqui também sobra algo para ser elogiado?" - Sim.

Como dito antes, o esgoto a ser tratado nesta EPAR originar-se-á da coleta residencial da grande população daquela região que, atualmente, têm seus esgotos coletados e direcionados por interceptores localizados às margens do rio Pinheiros, até a ETE Barueri. Esta estação "trata-os" (com baixa eficiência) e os devolve ao rio Tietê, agravando ainda mais a situação daquele corpo hídrico.
A instalação deste sistema reduzirá a carga de esgotos despejados no Tietê e ainda possibilitará uma maior disponibilidade hídrica para a região atendida pela Guarapiranga.

Mas fica uma ressalva: Esta seria a solução ideal para simultaneamente transpor esta fase de estresse hídrico e, de quebra, promover a despoluição gradativa de nossos corpos hídricos, contanto que haja outros projetos do gênero para as regiões mais críticas da capital e região. Porém durante décadas nossos governantes permaneceram de costas para a questão do abastecimento público de água e do saneamento básico. Foi necessário ocorrer uma situação de escassez histórica com ameaça de falta d'água e desabastecimento de grande parcela da população, o que seria um crime, para que fosse vencida a inércia política.

Falamos aqui da região abastecida pela Guarapiranga que, entre os mananciais que servem São Paulo, é o menos crítico. O Sistema Cantareira corre o risco de entrar em colapso, e este deveria ser o foco atual.
Nunca é demais lembrar: Esta escassez histórica não é um evento isolado. Ela é histórica pois superou outra considerada histórica até então, mas sem sombra de dúvida OUTRAS também históricas irão ocorrer. Contar com a sorte é dar sopa para o azar.

Até a próxima!